quinta-feira, 13 de novembro de 2008

encontro sobre teatro e ritual - dia 4




O encontro do dia 22/09, foi nosso quarto dia de conversas. Juliana Jardim (atriz e pesquisadora das tradições orais africanas e do teatro de Peter Brook) e o Prof. Dr. John Dawsey (FFLCH/USP - Antropologia) haviam sido convidados pela Cia. Livre para discutir os dilemas de tradução cultural e da relação entre antropologia, teatro/performance e ritual. John Dawsey colocou sua visão a partir de um lugar: a antropologia e a experiência etnográfica, permeados pelo “interesse” no teatro. Sua proposição foi inverter a “flecha de contaminação”, buscando não vitalizar o teatro pleo ritual, mas investigar como o teatro pode vitalizar formas rituais.
Dawsey nos narrou, então, sua visita à Aparecida do Norte, quando morava no Buraco dos capetas, numa comunidade de bias-frias. Foi para lá com o time de futebol, por devoção à Nossa Senhora da Aparecida. Nessa viagem, conheceu Aparecida em termos rituais e teatrais.
Para definir teatro, Dawsey evocou Barthes (o teatro calcula o lugar olhado para as coisas) e Constance (em Os Sentidos do Mundo, os sentidos do mundo se formam através dos sentidos do corpo). Assim como o teatro, a antropologia calcula o lugar sentido das coisas. Nos termos da antropologia, em Aparecida está presente um exemplo de rito de passagem, composto por 1) separação, 2) transição, 3) reagregação. A separação, no grupo de romeiros do Buraco dos Capetas, aconteceu na leitura da passagem da Bíblia, indo para o santuário, na viagem pela Estrada e no momento dos rojões, logo na chegada, às 5:30h da madrugada. A transição (às margens da vida cotidina, onde se recria o sentido das coisas), ocorreu a partir da primeira visão da catedral, na sua escadaria, na missa e sua liturgia, nas etapas da visita ao edifício santo (o fundo da nave, centro gravitacional da igreja, a sala das muletas, os banheiros, onde os romeiros “purificaram-se” do calor e da poeira da jornada, a sala dos milagres, cheia de ex-votos e outros objetos de troca com o sagrado), repleta de escrituras de devoção por todos os lados), a ida ao topo de Aparecida (onde fica a primira capela), a chegada na feira (o local mais profano de todos), a descida do grupo pelas vielas labirínticas, o parque de diversões que visitaram e o retorno ao ônibus, no estacionamento. A reagregação, é demarcada pela viagem de volta e nas conversas sobre a viagem, já em casa.
O momento da ida ao parque de diversões foi bastante particular, segundo nosso convidado. O apresentador do parque anunciou aos presentes o espetáculo das três mulheres, a mulher cobra, a mulher gorilla e a mulher lobisomen. Prepara-se a cena: um das tais mulheres recebe uma injeção e uma jaula é colocada sobre o palco. A luz é indefinida, mas pode-se vislumbrar a transformação dessa mulher em animal. Ela salta para fora da jaula e súbito, avança sobre a platéia. Caos e medo. Fim da apresentação.



Dawsey pergunta-se: “por que a mulher lobisomen foi a lembrança mais forte da viagem a Aparecida?” Os ritos de passagem, de ida às margens estraordinárias da vida e retorno ao cotidiano, são “lugares” onde a pessoa dquire o conhecimento de algo que não sabia. Esse conhecimento aprofunda-se no tecido. No parque, essa expectativa foi conduzida às margens das margens, tangenciando o processo ritual em seus limites.
Dawsey compara essa experiência com outras que teve no convício com essa população:
1 – mulher conta como enfrentou o trator, numa situação de conflito de terra. Ela diz: “parece que eu mudo de repente. Eu não sei porque eu sou assim.”;
2- mulher briga com o dono do bar e diz “parece que eu virei onça”;
3 – a mãe defende sua cria e salta no meio da aldeia, virando um bicho agressivo.
Todas essa lembranças remetem a transformações pelo corpo, pelo gesto, do humano no animal. Aparecida tem um poder cosmológico, de juntar forças sociais; mas o Parque de Diversões tornou mais presente o gesto, a forma de ser transformável (homem/bicho/homem). Nos corpos tensos, enervados, as divisões usuais da vida cotidiana não estavam mais separadas…

Sagrado/profano
Santo/animal
Igreja/ parque de diversões
Ritual/ teatro

A sobreposição desses elementos produziu o efeito de despertar, garantido pela presença do Parque de Diversões no roteiro da viagem. Como um efeito brechtiano, o Parque ofereceu o contraste da oposição e permitiu o “espanto”. Depois do espanto, o que retorna não é mais o mesmo. O parque, portanto, tem relação íntima com a Igreja e o espaço santo.
A imagem da Santa continuou presente, o tempo todo, mesmo após o retorno. Aparecida faria, ela mesma, um rito de passagem? Onde estava ela, no parque de diversões? Na catedral, o alto corpo, a face da Virgem e depois, a sua oposição: a Virgem retorna, contrastada, nas outras imagens do feminino; agora, em relação ao caos, ao baixo corporal medonho, cheio de escamas e pelos.
Dawsey pergunta se existiria no percurso da Virgem também um “rito de cena”. Analisa, então, o caminho da Virgem. Em 1717, o corpo da estátua é encontrado. Depois, bem depois, sua cabeça. As duas partes são coladas. Na viagem, a Virgem Aparecida vai para o Buraco dos Capetas e passa a viver nos altares dos barracos. Os milagres repetem-se nas expressões de espanto, no parque de diversões e em cada vez que ela é invocada – “Nossa Senhora!”. Pensando no rito do teatro como aquele onde um olhar é escolhido, Dawsey recorda a fusão que o ele/o espectador faz dos aspectos em conflito. O teatro é, assim, o lugar da coexistência de oposições, lugar de atrito. Voltando ao percurso da virgem: Aparecida retorna para a catedral. Ela mesma está transformada; ela pode ver as coisas de outra forma. Os próprios lugares do Sagrado podem despertar, com o estranhamento possibilitado pelo teatro.





Juliana também iniciou sua fala a partir da demarcação do lugar do seu olhar, apresentando uma tradução livre da canção da família Koyaté. A função da canção, na tradição oral na qual a família se insere, é “reconectar-se” e, para ela, os versos situam sua própria experiência na tradição dessa família, através de Sotigui Koyaté, reunindo duas viagens que fez com ele à África e uma série de workshops do ator africano no Brasil.
Juliana enfatiza como ela, ao fazer sua fala em nossa presença, rompe com algumas tradições da cultura a que fará referência: em Mali e Burkina Faro (região sub-sahariana do oeste africano, que formam o império Mandengue), só se pode falar do que se viveu a partir dos 42 anos (quando a missão do indivíduo é tornar pública sua palavra). Assim, na pesquisa de realiza, efetua uma série de “transgressões”, entre elas, a da tradução (dos sete dialetos empregados pelos griots para o português), da transformação dos fins (os griots não separam sua vida de sua arte e Juliana estuda essa tradição para enfocar a questão da formação do ator) e da forma de comunicação (de uma tradição eminentemente oral, para a uma pesquisa onde a escrita é fundamental).
Sotigui é um ator africano, hoje ligado ao CIPT, dirigido por Peter Brook. Mora e atua na França, mas mantém sua “função” em sua região de origem; função que nos será explicada mais tarde. Juliana resume a intensidade e dimensão dessa experiência, ressaltando o aspecto pedagógico do trabalho desse ator. A transmissão de conhecimentos no contato com o ator africano era efetuada através de poucos exercícios e muitas narrativas (orais, ao vivo, ou através de vídeos); todas elas com reverberações na prática. Quando narra, por exemplo, sua experiência como caçador e seu primeiro encontro com um leão numa caçada, Sotigui propõe a seguir um exercício que contém o mesmo nível de percepção “sutil” desse confronto.
Ao lado disso, um intenso trânsito no contato corporal com os alunos e o rápido acesso aos universos pessoais de cada um deles caracterizaram os workshops. Sotigui é um “aconselhador”. Essa forma de transmissão remete à cultura Mandengue, onde a noção de pessoa inclui MOGO (a fala da pessoa) e MOGOIÁ (a pessoa da pessoa, que é conhecida através do encontro). O ator africano trabalha com a “presença”.




Os griots são narradores tradicionais. Numa narrativa mítica que Juliana nos lê, está contida a explicaçnao de como o espírito das coisas, tornado homem, é morto e devorado (ou, aspirado), para renascer sempre em outras formas, até torna-se o griot, que tem na piedade dos outros a possibilidade de sobrevivência. Os gritos, na hierarquia dos mandengue, está abaixo dos nobres e dos praticantes de ofícios tradicionais. Sua responsabilidade é a transmissnao da história, mas também possuem o poder bufo. Como o sangue no corpo, o griot circula em todas a sociedade; a qual pode curar ou fazer adoecer.
Conta-se que os Koyaté são os primeiros griots, surgidos nos séculos XI ou XIV. Sua missão é cuidar da família Keytá e, para isso, conhecem a história das dez gerações dessa família. ‘Cuidar” é uma constante nessa sociedade africana, o que muda muitos aspectos da vida, individual e social. Muda-se a relação com o tempo (a quantidade de tempo que se toma na lida com o outro), reduz-se o espaço da solidão (não existe “sofrimento por solidão” e a vida toda parece menos dramatizada. Até o teatro parece mais “leve”).
O griot não atua sozinho, mas acompanhado de um “respondedor”. O respondedor diz “namo” (“eu te escuto”) e outras “frases de controle” e dá o pulso da narrativa. Ele não deixa que o público se afaste da história e controla sua atenção, regendo a tensão da platéia, como um diretor-parceiro). Os griots são homens e mulheres, mas as mulheres são consideradas mais sábias, porque têm mais buracos.
Nessa sociedade, teatro é o espaço (circular, formado por camadas de crianças, mulheres e homens) pode ser traduzido por “vamos nos encontrar”. Ir ao teatro pode significar “ir clarear a própria visão”… a função do teatro está pulsante em sua etimologia. Juliana encerrou suas colocações contando que o tema da sua pesquisa surgiu quando assistiu, num workshop com Sotigui, um vídeo sobre os crocodilos sagrados de certas regiões do Mali. Nele, um homem subia nas costas de um crocodilo gigante, à beira de um lago. Ela ficou fascinada com a sensação de medo e suspensão e emocionada com a qualidade daquela “presença”. A subida no crocodilo (que ela pôde vivenciar mais tarde, já na África) significava atravessar o medo, mas de um modo alegre e atento. Depois, o ator africano trabalhou na sala de ensaio, num exercício de teatro com os alunos brasileiros, a mesma qualidade. O exercício tratava da possibilidade de comunicação via “percepção”, sem usar palavras, ou do que se chama em teatro de “escuta” ; cuja chave está em “flagar-se no presente”. A pesquisa, então, deixou de ser sobre a palavra, para observar o silêncio onde a palavra pode nascer (e o vigor que passa a acompanhar essa descoberta).
A platéia sugeriu um mergulho mais fundo na noção de tradução, que aparecera nas duas falas dos convidados. Dawsey explicou que esse procedimento ganha espaço dentro da antropologia, com vistas à tradução cultural. Segundo ele, o melhor lugar para se entender o outro é o lugar onde a estranheza do outro apresenta-se da forma mais expressiva. Antropólogos, diante dessa estranheza, buscam situar-se de maneira a reconstituir aquela “estranheza” dentro de um conjunto de relações, onde ela possa ganhar significado. Entende-se o outro a partir de onde ele se expressa; o texto é estranho, mas esse conjunto de textos gera um contexto. Esse é, certamente, um movimento de “traição”, de “interpretação”; mas a “boa tradução” desmonta a sua própria linguagem, porque abre-se para a estranheza do outro. O risco da “mal tradução” está em querer tornar o estranho em algo familiar.
A platéia pergunta sobre o lugar do corpo no ritual e qual o procedimento para trazer para a cena a experiência do corpo vivenciado (recontar-se); inclusive, com o uso da voz. Juliana acrescenta que isso aparece em “lembrar-se de si”, um exercício que costuma dar em aula; onde o ator treina esse processo de contar-se: sempre quando está em cena, o ator tem ali um contador (alguém que conta algo). Dawsey destaca a noção de experiência para a antropologia. Para ele, a expressão artística precisa ser pensada assim também. Etimologicamente, experiência remete a pirata, perigo, passagem… algo que acontece agora e nos coloca em risco; ouu ainda, um passado que se articula com o presente. Esse “risco” mexe com os sentidos: demarca o momento de “dar sentidos”. Turner fala em “performat”, de “parfumerie”, “realizar uma experiência”. Diuter enfatiza que, numa relação musical, essa pode ser uma frase de dissonâncias. Quando o corpo está envolvido e exigido numa comunicação, leva-se obrigatoriamente à evocação de experiências. Zumthor fala, em A Letra e a Voz, dos índices de oralidade. Dawsey diz que procura “índices de gestualidade”, para suas próprias falas e as de seus alunos.
Duas perguntas diferentes cercaram a questão da experiência coletiva, sobre as possibilidades de encontro numa cidade como São Paulo e como efetuar o trânsito entre a vivência individual e a coletividade. Juliana lembrou os encenadores pedagogos e a busca por uma linguagem de investigação teatral que não separa a experiência cênica da “conquista”, pela humanidade, do humano. Dawsey voltou para o olhar da antropologia, a fim de enfatizar que o conceito de rito é coletivo. Em sua viagem à Aparecida do Norte, ele esteve junto com o fluxo do grupo (existia um sentido coletivo de devoção, mesmo que ele não seja “crente”). A surpresa maior foi a dele, que trouxe uma interpretação particular individual, que só ganhou sentido ao abarcar uma vivência coletiva.

(textos de Lúcia Walker Romano e fotos de Nelson Click Kao)

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