quinta-feira, 20 de novembro de 2008

fotos de VemVai na Caixa Cultural São Paulo



O espetáculo da Cia fez mais uma temporada de sucesso na Caixa Cultural São Paulo, um prédio imponente no coração da cidade, na Praça da Sé. A temporada foi de 31 de outubro a 09 de novembro de 2008.




















Ainda não assistiu? Então anote aí: O espetáculo continua viajando. Já foram realizadas apresentações em Santos/SP (12/11/2008) e São José dos Campos/SP (14 e 15/11/2008) e ainda haverá uma outra em Serrana/SP dia 23 de novembro.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

encontro sobre teatro e ritual - dia 4




O encontro do dia 22/09, foi nosso quarto dia de conversas. Juliana Jardim (atriz e pesquisadora das tradições orais africanas e do teatro de Peter Brook) e o Prof. Dr. John Dawsey (FFLCH/USP - Antropologia) haviam sido convidados pela Cia. Livre para discutir os dilemas de tradução cultural e da relação entre antropologia, teatro/performance e ritual. John Dawsey colocou sua visão a partir de um lugar: a antropologia e a experiência etnográfica, permeados pelo “interesse” no teatro. Sua proposição foi inverter a “flecha de contaminação”, buscando não vitalizar o teatro pleo ritual, mas investigar como o teatro pode vitalizar formas rituais.
Dawsey nos narrou, então, sua visita à Aparecida do Norte, quando morava no Buraco dos capetas, numa comunidade de bias-frias. Foi para lá com o time de futebol, por devoção à Nossa Senhora da Aparecida. Nessa viagem, conheceu Aparecida em termos rituais e teatrais.
Para definir teatro, Dawsey evocou Barthes (o teatro calcula o lugar olhado para as coisas) e Constance (em Os Sentidos do Mundo, os sentidos do mundo se formam através dos sentidos do corpo). Assim como o teatro, a antropologia calcula o lugar sentido das coisas. Nos termos da antropologia, em Aparecida está presente um exemplo de rito de passagem, composto por 1) separação, 2) transição, 3) reagregação. A separação, no grupo de romeiros do Buraco dos Capetas, aconteceu na leitura da passagem da Bíblia, indo para o santuário, na viagem pela Estrada e no momento dos rojões, logo na chegada, às 5:30h da madrugada. A transição (às margens da vida cotidina, onde se recria o sentido das coisas), ocorreu a partir da primeira visão da catedral, na sua escadaria, na missa e sua liturgia, nas etapas da visita ao edifício santo (o fundo da nave, centro gravitacional da igreja, a sala das muletas, os banheiros, onde os romeiros “purificaram-se” do calor e da poeira da jornada, a sala dos milagres, cheia de ex-votos e outros objetos de troca com o sagrado), repleta de escrituras de devoção por todos os lados), a ida ao topo de Aparecida (onde fica a primira capela), a chegada na feira (o local mais profano de todos), a descida do grupo pelas vielas labirínticas, o parque de diversões que visitaram e o retorno ao ônibus, no estacionamento. A reagregação, é demarcada pela viagem de volta e nas conversas sobre a viagem, já em casa.
O momento da ida ao parque de diversões foi bastante particular, segundo nosso convidado. O apresentador do parque anunciou aos presentes o espetáculo das três mulheres, a mulher cobra, a mulher gorilla e a mulher lobisomen. Prepara-se a cena: um das tais mulheres recebe uma injeção e uma jaula é colocada sobre o palco. A luz é indefinida, mas pode-se vislumbrar a transformação dessa mulher em animal. Ela salta para fora da jaula e súbito, avança sobre a platéia. Caos e medo. Fim da apresentação.



Dawsey pergunta-se: “por que a mulher lobisomen foi a lembrança mais forte da viagem a Aparecida?” Os ritos de passagem, de ida às margens estraordinárias da vida e retorno ao cotidiano, são “lugares” onde a pessoa dquire o conhecimento de algo que não sabia. Esse conhecimento aprofunda-se no tecido. No parque, essa expectativa foi conduzida às margens das margens, tangenciando o processo ritual em seus limites.
Dawsey compara essa experiência com outras que teve no convício com essa população:
1 – mulher conta como enfrentou o trator, numa situação de conflito de terra. Ela diz: “parece que eu mudo de repente. Eu não sei porque eu sou assim.”;
2- mulher briga com o dono do bar e diz “parece que eu virei onça”;
3 – a mãe defende sua cria e salta no meio da aldeia, virando um bicho agressivo.
Todas essa lembranças remetem a transformações pelo corpo, pelo gesto, do humano no animal. Aparecida tem um poder cosmológico, de juntar forças sociais; mas o Parque de Diversões tornou mais presente o gesto, a forma de ser transformável (homem/bicho/homem). Nos corpos tensos, enervados, as divisões usuais da vida cotidiana não estavam mais separadas…

Sagrado/profano
Santo/animal
Igreja/ parque de diversões
Ritual/ teatro

A sobreposição desses elementos produziu o efeito de despertar, garantido pela presença do Parque de Diversões no roteiro da viagem. Como um efeito brechtiano, o Parque ofereceu o contraste da oposição e permitiu o “espanto”. Depois do espanto, o que retorna não é mais o mesmo. O parque, portanto, tem relação íntima com a Igreja e o espaço santo.
A imagem da Santa continuou presente, o tempo todo, mesmo após o retorno. Aparecida faria, ela mesma, um rito de passagem? Onde estava ela, no parque de diversões? Na catedral, o alto corpo, a face da Virgem e depois, a sua oposição: a Virgem retorna, contrastada, nas outras imagens do feminino; agora, em relação ao caos, ao baixo corporal medonho, cheio de escamas e pelos.
Dawsey pergunta se existiria no percurso da Virgem também um “rito de cena”. Analisa, então, o caminho da Virgem. Em 1717, o corpo da estátua é encontrado. Depois, bem depois, sua cabeça. As duas partes são coladas. Na viagem, a Virgem Aparecida vai para o Buraco dos Capetas e passa a viver nos altares dos barracos. Os milagres repetem-se nas expressões de espanto, no parque de diversões e em cada vez que ela é invocada – “Nossa Senhora!”. Pensando no rito do teatro como aquele onde um olhar é escolhido, Dawsey recorda a fusão que o ele/o espectador faz dos aspectos em conflito. O teatro é, assim, o lugar da coexistência de oposições, lugar de atrito. Voltando ao percurso da virgem: Aparecida retorna para a catedral. Ela mesma está transformada; ela pode ver as coisas de outra forma. Os próprios lugares do Sagrado podem despertar, com o estranhamento possibilitado pelo teatro.





Juliana também iniciou sua fala a partir da demarcação do lugar do seu olhar, apresentando uma tradução livre da canção da família Koyaté. A função da canção, na tradição oral na qual a família se insere, é “reconectar-se” e, para ela, os versos situam sua própria experiência na tradição dessa família, através de Sotigui Koyaté, reunindo duas viagens que fez com ele à África e uma série de workshops do ator africano no Brasil.
Juliana enfatiza como ela, ao fazer sua fala em nossa presença, rompe com algumas tradições da cultura a que fará referência: em Mali e Burkina Faro (região sub-sahariana do oeste africano, que formam o império Mandengue), só se pode falar do que se viveu a partir dos 42 anos (quando a missão do indivíduo é tornar pública sua palavra). Assim, na pesquisa de realiza, efetua uma série de “transgressões”, entre elas, a da tradução (dos sete dialetos empregados pelos griots para o português), da transformação dos fins (os griots não separam sua vida de sua arte e Juliana estuda essa tradição para enfocar a questão da formação do ator) e da forma de comunicação (de uma tradição eminentemente oral, para a uma pesquisa onde a escrita é fundamental).
Sotigui é um ator africano, hoje ligado ao CIPT, dirigido por Peter Brook. Mora e atua na França, mas mantém sua “função” em sua região de origem; função que nos será explicada mais tarde. Juliana resume a intensidade e dimensão dessa experiência, ressaltando o aspecto pedagógico do trabalho desse ator. A transmissão de conhecimentos no contato com o ator africano era efetuada através de poucos exercícios e muitas narrativas (orais, ao vivo, ou através de vídeos); todas elas com reverberações na prática. Quando narra, por exemplo, sua experiência como caçador e seu primeiro encontro com um leão numa caçada, Sotigui propõe a seguir um exercício que contém o mesmo nível de percepção “sutil” desse confronto.
Ao lado disso, um intenso trânsito no contato corporal com os alunos e o rápido acesso aos universos pessoais de cada um deles caracterizaram os workshops. Sotigui é um “aconselhador”. Essa forma de transmissão remete à cultura Mandengue, onde a noção de pessoa inclui MOGO (a fala da pessoa) e MOGOIÁ (a pessoa da pessoa, que é conhecida através do encontro). O ator africano trabalha com a “presença”.




Os griots são narradores tradicionais. Numa narrativa mítica que Juliana nos lê, está contida a explicaçnao de como o espírito das coisas, tornado homem, é morto e devorado (ou, aspirado), para renascer sempre em outras formas, até torna-se o griot, que tem na piedade dos outros a possibilidade de sobrevivência. Os gritos, na hierarquia dos mandengue, está abaixo dos nobres e dos praticantes de ofícios tradicionais. Sua responsabilidade é a transmissnao da história, mas também possuem o poder bufo. Como o sangue no corpo, o griot circula em todas a sociedade; a qual pode curar ou fazer adoecer.
Conta-se que os Koyaté são os primeiros griots, surgidos nos séculos XI ou XIV. Sua missão é cuidar da família Keytá e, para isso, conhecem a história das dez gerações dessa família. ‘Cuidar” é uma constante nessa sociedade africana, o que muda muitos aspectos da vida, individual e social. Muda-se a relação com o tempo (a quantidade de tempo que se toma na lida com o outro), reduz-se o espaço da solidão (não existe “sofrimento por solidão” e a vida toda parece menos dramatizada. Até o teatro parece mais “leve”).
O griot não atua sozinho, mas acompanhado de um “respondedor”. O respondedor diz “namo” (“eu te escuto”) e outras “frases de controle” e dá o pulso da narrativa. Ele não deixa que o público se afaste da história e controla sua atenção, regendo a tensão da platéia, como um diretor-parceiro). Os griots são homens e mulheres, mas as mulheres são consideradas mais sábias, porque têm mais buracos.
Nessa sociedade, teatro é o espaço (circular, formado por camadas de crianças, mulheres e homens) pode ser traduzido por “vamos nos encontrar”. Ir ao teatro pode significar “ir clarear a própria visão”… a função do teatro está pulsante em sua etimologia. Juliana encerrou suas colocações contando que o tema da sua pesquisa surgiu quando assistiu, num workshop com Sotigui, um vídeo sobre os crocodilos sagrados de certas regiões do Mali. Nele, um homem subia nas costas de um crocodilo gigante, à beira de um lago. Ela ficou fascinada com a sensação de medo e suspensão e emocionada com a qualidade daquela “presença”. A subida no crocodilo (que ela pôde vivenciar mais tarde, já na África) significava atravessar o medo, mas de um modo alegre e atento. Depois, o ator africano trabalhou na sala de ensaio, num exercício de teatro com os alunos brasileiros, a mesma qualidade. O exercício tratava da possibilidade de comunicação via “percepção”, sem usar palavras, ou do que se chama em teatro de “escuta” ; cuja chave está em “flagar-se no presente”. A pesquisa, então, deixou de ser sobre a palavra, para observar o silêncio onde a palavra pode nascer (e o vigor que passa a acompanhar essa descoberta).
A platéia sugeriu um mergulho mais fundo na noção de tradução, que aparecera nas duas falas dos convidados. Dawsey explicou que esse procedimento ganha espaço dentro da antropologia, com vistas à tradução cultural. Segundo ele, o melhor lugar para se entender o outro é o lugar onde a estranheza do outro apresenta-se da forma mais expressiva. Antropólogos, diante dessa estranheza, buscam situar-se de maneira a reconstituir aquela “estranheza” dentro de um conjunto de relações, onde ela possa ganhar significado. Entende-se o outro a partir de onde ele se expressa; o texto é estranho, mas esse conjunto de textos gera um contexto. Esse é, certamente, um movimento de “traição”, de “interpretação”; mas a “boa tradução” desmonta a sua própria linguagem, porque abre-se para a estranheza do outro. O risco da “mal tradução” está em querer tornar o estranho em algo familiar.
A platéia pergunta sobre o lugar do corpo no ritual e qual o procedimento para trazer para a cena a experiência do corpo vivenciado (recontar-se); inclusive, com o uso da voz. Juliana acrescenta que isso aparece em “lembrar-se de si”, um exercício que costuma dar em aula; onde o ator treina esse processo de contar-se: sempre quando está em cena, o ator tem ali um contador (alguém que conta algo). Dawsey destaca a noção de experiência para a antropologia. Para ele, a expressão artística precisa ser pensada assim também. Etimologicamente, experiência remete a pirata, perigo, passagem… algo que acontece agora e nos coloca em risco; ouu ainda, um passado que se articula com o presente. Esse “risco” mexe com os sentidos: demarca o momento de “dar sentidos”. Turner fala em “performat”, de “parfumerie”, “realizar uma experiência”. Diuter enfatiza que, numa relação musical, essa pode ser uma frase de dissonâncias. Quando o corpo está envolvido e exigido numa comunicação, leva-se obrigatoriamente à evocação de experiências. Zumthor fala, em A Letra e a Voz, dos índices de oralidade. Dawsey diz que procura “índices de gestualidade”, para suas próprias falas e as de seus alunos.
Duas perguntas diferentes cercaram a questão da experiência coletiva, sobre as possibilidades de encontro numa cidade como São Paulo e como efetuar o trânsito entre a vivência individual e a coletividade. Juliana lembrou os encenadores pedagogos e a busca por uma linguagem de investigação teatral que não separa a experiência cênica da “conquista”, pela humanidade, do humano. Dawsey voltou para o olhar da antropologia, a fim de enfatizar que o conceito de rito é coletivo. Em sua viagem à Aparecida do Norte, ele esteve junto com o fluxo do grupo (existia um sentido coletivo de devoção, mesmo que ele não seja “crente”). A surpresa maior foi a dele, que trouxe uma interpretação particular individual, que só ganhou sentido ao abarcar uma vivência coletiva.

(textos de Lúcia Walker Romano e fotos de Nelson Click Kao)

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

encontro sobre teatro e ritual - dia 3

No dia 15/09, terceiro dia dos encontros, dois atores-pesquisadores, Paschoal da Conceição (ator e diretor teatral) e Renato Ferracini (ator do LUME e professor da Unicamp) ofereceram relatos pessoais sobre os dilemas da relação entre teatro e ritual, a partir da perspectiva do trabalho do ator e das experiências do Oficina e do LUME. Talvez o tema secreto do encontro tenha sido “transformações”. Vejamos porque.
Transformando o protocolo, Paschoal saltou da cadeira e, lembrando os versos das Bacantes, da montagem do Oficina, sagrou sua fala à Dioniso e inaugurou um novo território para o nosso encontro, da fala-performativa. “A vida vira santa… pratica sagradas ações… celebra a orgia de Nanã… a Dionisos se entrega… corôa a cabeça de heras… um tirso na mão… um Messias que se bebe…” foram retalhos dessa fala que ficaram marcados, enquanto Paschoal canto-pedia “baixai Bacantes!” e encerrava “Ió!”.
Segundo Paschoal, foi determinante para sua reflexão um trecho do nosso e-mail convite, onde falávamos de “dilemas de tradução” e o provocávamos com a pergunta “em que medida o teatro é ou não um ritual?”. Paschoal lembrou do I-Ching, para salientar que as forças religiosas servem para superar o egoísmo; mas que a instituição eos governos utilizam essa necessidade humana para a coerção. Sua definição de ritual passeiou entre vários aspectos: o ritual enquanto forma de relação entre a família e o estado; o ritual enquanto recurso para o “despertar da consciência para a origem comum de todos os seres”; o ritual enquanto fenômento coletivo; o ritual e sua temporalidade (começo/meio/fim) e o ritual enquanto “algo” técnico, combinado, que o sujeito realiza com “religiosidade”.
Ficou explícito que Paschoal não faria uma separação etimológica dos termos teatro, ritual e religião; mas uma ampliação da relação entre essas “palavras-guarda-chuva”, através de sua dimensão metafórica. Paschoal posicionou-se, então, em primeira pessoa, para relatar sua experiência íntima nessa área sensível à flutuação das terminologias.






Paschoal conta em sua fala como já viveu diversas experiências religiosas, de ritos religiosos em diferentes igrejas. No teatro, As Bacantes, na versão do Oficina, é o principal exemplo que destaca para discutir o ritual do deus Dioniso. Ele demarca ter vivido duas experiências diversas nesse espetáculo, quando entrou em cena “normal” (“eu, de eu”, segundo ele) e “pegado” (tendo bebido ayhuasca). O estado alterado da ayhuasca estabelece o ritual do teatro numa temporalidade especial, composta de angústia (ao invés de “início”, na coxia), deleite (ao invés de “meio”, no palco) e ressaca (maresia, reflexão, cansaço, ao invés de “fim”). A abertura da substância potencializa o medo de se perder, da loucura, da desgovernabilidade do poder criador. Estar em cena é “pânico!”; o que não pode ser vivido a toda hora. A ressaca do retorno é tão exaustiva, porque o ritual acontece NO CORPO do ator; é o corpo que vive e traduz, transitando entre maior e menor consciência, suas transformações.
Paschoal lembra que, na vida, a adolescência exemplifica um momento no qual os indivíduos passam por grandes transformações corporais. São transformações doloridas e, sobretudo, lentas, porque o sujeito precisa tornar-se consciente delas. Os espectadores também vão ao teatro para passar por transformações e nesse aspecto, teatro é um ritual. Mas, esse ritual é do tipo “teatral”. Por isso, mesmo na alucinação, o ator em cena precisa estar “alucinado pelo teatro”, “alucinado pela alucinação do teatro”.

Paschoal ilustra esse ponto, narrando o embate que travou consigo mesmo na cena das Bacantes, quando seu personagem, um policial, deveria “capturar Dioniso”. Na alucinação consciente da ayhuasca, Paschoal desejava comer um mixto quente com guaraná. Ao mesmo tempo, as sensações e reflexões sucederam-se: “o plantão ainda não acabou… e se eu encontrar as bacantes, armadas de pedra e pau, na coxia? E se eu não cumprir o que se espera do policial? Para onde vai a história?” Paschoal concluiu seu questionamento formulando as máximas da governabilidade e da fé: a governabilidade deverá vencer a alucinação; caso contrário, o ritual do teatro não será cumprido. O ator, como um “ser crédulo”, não deve ser de nenhuma igreja, mas manter-se crente.



Ferracini optou por relacionar a princípio os campos do ritual (numa acepção ampla) e do ritual teatral, a partir de um conceito que formulou sobre a “potência da diferença”. O ritual religioso, estebelcido com o objetivo de uma “religação”, traz uma potencialidade de mudança do sujeito, apontando para novas possibilidades de visão sobre o mundo. No cotidiano, nossos “rituais” abrem a possibilidades de movimento.
As formas rituais e o teatro assemelham-se no paradoxo entre repetição e transformação:
- a repetição revela novas possibilidades da existência;
- teatro e ritual caracterizam-se pela ação repetida;
- essa ação repetida nunca é a mesma (é uma aparência de repetição, mas como a atualização da “potência de diferença”;
- teatro e ritual servem para recordar a infinidade de combinações possíveis, de variações de um único fenômeno (por ex. – a chuva contém infinitas singularidades). O que “retorna” da repetição é a diferença.
- teatro e ritual tornam-se “esvaziados’ quando perdem suas pequenas diferenciações (ficam “mecanizados”);
- teatro e ritual atuam sobre a “suspensão” da descrença (de si mesmo e do mundo), porque propõem uma ação que precisa ser realizada. Mesmo a “consciência de representação”, que caracteriza o teatro, não rompe com essa “crença”. A palavra do ritual é “religare” e do teatro “revivere” – em ambas, aparece a idéia de “resistência”.
Os dois pontos, “o que retorna é a diferença” e “suspensão da descrença, via um artifício” constituem para Ferracini chaves dessa relação entre teatro e ritual; as quais desenvolvem o aspecto da transformação nos dois campos. O teatro (não só o espetáculo teatral, mas os ensaios, treinamentos, etc) trabalha na “infra-consciência” corpórea; suas mudanças importantes são microscópicas. O corpo, aparentemente estável, passa por mudanças celulares (as células ósseas são renovadas a cada dez anos…). O ritual também atua no “macroscópico” e no “microscópico”… Mas, segundo Ferracini, o que importa é o mergulho nas micro-percepções (conceito de Leibniz). Ele lembra que o mesmo é afirmado por Deleuze, quando argumenta que aquilo que é “percebido” é o macro (de fato, uma ilusão completa); enquanto que o que “afeta” é o micro (captável pelas sensacões…). Um exemplo dessa diferença de consciência está na alteração da sensação temporal, pela mudança na percepção sensitiva.








Mais uma vez, as questões da mesa e da platéia confundiram e ampliaram o debate. Paschoal foi solicitado a definir melhor a linha tênue que desenhou entre ordem e acaso, presente em sua conceituação sobre a “governabilidade” no trabalho do ator. Paschoal recordou como as leis do ritual buscam controlar as possibilidades de “desgoverno”. No teatro, são leis dessa espécie o “projetar a voz”, “ter clareza nas ações” e “dar cabo da história”. Os ensaios são estudos, pensados com vistas a essa clareza. Na técnica de “ensaio silencioso”, por exemplo, salta aos olhos o monólogo interior, que na construção do ator também oferece a “governabilidade”.
Observando a Orestéia, de Ésquilo, percebe-se a presença de uma caçada. O mesmo ocorre nas Bacantes: o espírito do ator deve trabalhar sobre essa caçada. Também com a caçada, seu espírito está sendo trabalhado, o tempo todo. Nesse caso, o espírito da caçada é um elemento de governabilidade a ser empregado pelo ator. Em primeira e última instâncias, o ator está na caçada do espectador e para isso ele usa a peça.
Paschoal revela que aprendeu a não se deixar desgovernar. O risco é constante: por vezes, ele vai além e “paga um”. Mas ele fica realmente “puto” quando vai “menos”. Porque ele não pegou a platéia e não contou sua história. O custo não é baixo: quem não faz direito o rito, leva porrada. O ator, segundo ele, sabe disso. A “pessoa do ator” tem que preparar-se antes para, na hora da cena, estar na linha de frente.
Ferracini buscou tornar mais claro o conceito de potência de diferenciação no trabalho do LUME. Contou que esse enfoque apareceu no grupo, principalmente, atravees do trabalho com o butoh. O dançarino do butoh trabalha as micro-ações; lida com as micro-musculaturas. Olhando “de fora”, ele parece inerte, mas está enfocando o desenho da ação e a postura pouco usual (altamente tonificada) e busca uma maneira de dançar as pequenas variações, no espaço e no tempo. Assim, o interesse do LUME está na pesquisa da açnao sutilizada, por exemplo, perguntando “o que você tem que mover para dançar parado?”. A pergunta mostra como dentro de uma ação pode-se realizar muitas coisas. Ela abre uma escuta para o outro e para o espaço, estabelecendo essas relações microscópicas, às quais mesmo as ações de deslocamento precisam estar vinculadas. A demonstração técnica “prisão para a liberdade” aborda isso. A conclusão de Deleuze cabe aqui: as criações (artística, filosófica ou científica) precisam manter as possibilidades do caos, não sua desordem.
A platéia inquiriu os dois convidados a respeito da potência ritual ter ou não relação com uma finalidade e, no caso da performance, com a impossibilidade de repetição. Ferracini lembrou que a performance coloca em primeiro plano a diferença, mas não tocou no asssunto da “irreprodutibilidade” da performance, porque insistiu na sua colocaçnao de que não existe repetição, apenas “diferença”. Citou como exemplo o ritual cotidiano de escovar os dentes, para falar de um ritual que não é religioso e de como a iluminação pode aparecer num “lugar” onde a ação ritualística não prevê essa “mudança de consciência”.
Paschoal destacou que, para alguém atingir um mudança de qualidade, precisa provocar um “estado de alteridade”. As formas rituais têm seus “signos” particulares, inventados para promover e indicar essa alteridade. A contracultura trouxe uma apropriação “pragmática” (eu diria, programática) dessas significações rituais. Esse material já foi inovador em outros tempos do teatro, mas o teatro ritual precisa reinventar esse modelo e isso não é fácil. Paschoal recorda, contudo, que o teatro é absolutamente “espírita” (vide o trabalho de Stanislávski…). Se é difícil reinventar essa “simbologia”, por outro lado, o ator brasileiro sabe o que é o ritual, porque vive isso na cultura; ele “sabe a perturbação do filho de santo que [ele] é.” Cutucando o companheiro de mesa, concluiu: “Deleuze vem antes; na hora, é você. Você é seu Deus.”
Interessante uma das perguntas, que questionou se esse “ritual da transformação no corpo” pode aparecer em todos os tipos de teatro, ou apenas no teatro de grupo; sendo potência presente somente numa dimensão de “teatro ritual”, que o “teatro comercial” não pode atingir. Ferracini afirmou claramente que o teatro que ele conhece é o de grupo, porque são quatorze anos de trabalho no LUME. Esse teatro pode até protegê-lo das leis de mercado, mas também é um lugar de tensão. Contudo, acredita que a potência de transformação é inerente ao humano e pode estar presente em todos os tipos de teatro.
Para Paschoal, o ator deve poder praticar o teatro sagrado e o teatro profano. Para ele, foi importante “fazer todas as misturas”, sem deixar-se contaminar pelo pior do profano, nem pelo pior do sagrado. O ator deve ser cavalo de diferentes tipos de teatro. No teatro ritual, o ator produz algo para vivenciá-lo e, depois, sair dalí. Porque, caso contrário, ele vira sacerdote. Mas também no teatro comercial, o ator pode virar carola e maluco e é preciso tomar cuidado com TODAS as religiões.
Mais uma vez, a platéia quiz saber qual a dimensão do coletivo, no aspecto de compartilhamento da experiência de um “teatro ritual”. Renato foi direto ao afirmar que teatro é sempre um rito coletivo, mesmo num solo. Nunca será um ritual individual. Mas não existe apenas a participação direta da assistência, já que incluir o espectador pode ocorrer de diferentes maneiras em diferentes trabalhos. Contudo, em tudo que o LUME faz, está a presença do público participante. Paschoal resumiu que, mesmo que a participação do espectador esteja prevista (e isso o Oficina faz muito), o espectador pode sair da peça sem “sentir nada”. A platéia não é ignorante, nem manipulável. Ela está pronta para a cena, emitindo sinais, e o ator deve estar sensível e calmo, para encontrar a sua caça. O rito precisa ser cumprido, mas o ator não precisa problematizar isso. Segundo Paschoal, o teatro já era mediúnico e religioso, antes de todos nós, presentes no TUSP no dia 15 de setembro, estarmos vivos.
Mas, nada como encerrar a noite em contradição. Questionado sobre como se dilui a técnica, num corpo e num espírito, na experiência do corpo cênico “dilatado”, Ferracini recusou qualquer separação entre corpo e espírito, uma vez que o corpo é sistêmico. O corpo não é instrumento, nem transcendente e qualquer “boa técnica” deverá perseguir a relação entre todos esses planos de ação.

(textos de Lúcia Walker Romano e fotos de Nelson Click Kao)

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

encontro sobre teatro e ritual - dia 2

O segundo dia de conversas, 08/09, foi também o primeiro em que recebemos no TUSP convidados de fora da Cia. Livre. O Prof. Dr. Cassiano Quidici (da PUC – SP e da Unicamp) e a Prof. Dra. Christine Greiner (professora de Comunicação e Semiótica e pesquisadora das tradições orientais) foram provocados a discutir as pontes entre teatro, performance, dança e ritual, a partir da perspectiva da apropriação de formas teatrais convencionadas ligadas à tradição do teatro (o japonês tradicional e o teatro balinês) pelo teatro contemporâneo ocidental e oriental.

Apesar de muito ampla, a questão posicionava o problema da tradução entre os dois campos, das artes performativas (o teatro aí incluído) e do ritual, no seu sentido “usual”, ou seja, não relacionado às formas de teatro.




Cassiano iniciou sua fala questionando a razão que impulsionam o desejo de relacionar a prática teatral aos universos rituais. Para ele, está “embutida” nessa preocupação a vontade de explorar as tensões entre os dois universos; gerar questinamentos produtivos, sobre a linguagem teatral, o sentido do fazer teatral e o lugar do teatro na nossa sociedade.


Artaud (num viés nietzchiano) postulou o nascimento do teatro no Ocidente como negação do rito (ou, o “recalcamento” do ritual). Na performance contemporânea, esse “algo recalcado” torna a pedir expressão. Essa relação, contudo, necessita um procedimento de tradução. O ritual, a rigor, está fora das categoria estética (se definirmos essa categoria a partir do pensamento ocidental moderno, do século XVIII; onde o “estético” está relacionado ao prazer desinteressado e ao universo do conhecimento sensível). Nos contextos tradicionais, os elementos estéticos (música, dança, etc) estão presentes, porém com finalidades ligadas à vida prática, com vistas a uma “eficácia” particular.

Cassiano definiu essa finalidade e eficácia do ritual em alguns elementos;

a) sustentação do “estado humano”.

As fronteiras entre o estado humano e os outros estados são frágeis e precisam de um “investimento” da cultura para sua manutenção. As intervenções da cultura ocorrem nos corpos dos indivíduos (por exemplo, os ritos de passagem , que marcam momentos significativos da vida individual, numa coletividade).

Esse tema é recorrente em religiões orientais (o budismo e o xintoísmo, por exemplo), que destacam a sua importância extrema. Apenas o estado humano permite o despertar; ainda mais importante do que o estado divino. Essa valorização do humano é diversa do modelo humanista europeu (mais racionalista).

b) diferenciação de “tipos especiais” de pessoas.

Os ritos de iniciação xamânica e outros ritos semelhantes são dirigidos a alguns “indivíduos especiais”, que fazem o trânsito entre os vários mundos descritos nas cosmologias (Eduardo Viveiros de Castro descreve o xamã como o “diplomata do cosmos”).

Depois dessa separação, Cassiano iniciou algumas formulações sobre cruzamentos entre teatro e ritual. Esses cruzamentos são espécies de “apropriações”, “traduções” entre os dois campos.

Numa grande elipse, ele comparou o xamã, que não pertence a nenhum lugar e por isso é “diferenciado”, ao ator do Nô japonês. Freud, na teoria psicanalítica (Luto e Melancolia), estuda a disjuncão e como ela deve ser feita. Já nos territórios tradicionais, o invisível não é descrito em termos psicológicos, mas cosmológicos. O mesmo procedimento está presente no teatro Nô – o personagem shitê (aquele que age) é um fantasma ou um deus, preso em algum lugar ou estado, enredado por questões “passionais”. O waki (o que testemunha) é um monge errante, um pescador ou outro personagem que não está fixado em nenhum território. Ele dá espaço para a expressão do shitê. A compreensão do teatro Nô extrapola a apreciação estética.

Outro cruzamento: Artaud, que teve uma intuição aguda sobre a centralidade do ritual para a necessidade do teatro. O teatro não foi feito para descrever o homem, mas para o constituir com um “ser de homem”, além de ajudá-lo a superar sua fragilidade e sua temporalidade.

A antropologia teatral também oferece sua leitura particular do ritual. A sua leitura, contudo, é um pouco mais “técnica”, a fim de escapar de interpretações “ecumênicas” do fenômeno. Barba busca fugir da imitação de formas, que apela para o exótico. Para Cassiano, entretanto, o teatro antropológico de Barba está ainda dentro dos limites da estética, sem atravessar fronteiras (por exemplo, restringe-se à discussões tais como a “presença do ator”). Grotowski, por outro lado, vai além disso (vide sua palestra de 1969). A formulação da “arte como veículo” é radical nesse sentido e as questões por ele levantadas são vivas e merecem novos debates.

A performance revê o tema do ritual, efetuando deslocamentos semelhantes dos procedimentos e finalidades, como é o caso, por exemplo, da proposta dos acionistas de Viena. É atribuído ao ritual algumas qualidades, que são do interesse desses artistas, as quais denotam uma leitura, muitas vezes, europeizada: o ritual é visto como o lugar da celebração de instintos agressivos e “além da civilização” (enquanto que no ritual esse ponto é, certamente, mais complexo). A performance torna pública uma experiência que é pessoal do neófito e, por vezes, vedada a outros testemunhos. Cassiano questiona se seria possível entender a experiência corporal da performance como uma “revisão” dos processos de dor presentes no rito. Tomando a obra de Marina Abramovic 7 Easy Pieces, poderíamos considerar seu trabalho uma “melodramatização”, uma espetacularização, onde os aspectos sacrificial e iniciático são (conscientemente ou inconscientemente) manipulados?





Christine Greiner optou por iniciar a conversa com uma comparação de formas de convivência entre mortos e vivos e entre realidade e ficção em várias manifestações da cultura japonesa. Segundo ela, esse trânsito é facilitado, porque no Japão a noção da relação estreita entre corpo e ambiente é muito presente: o ambiente não é apenas o local onde você está, mas também o universo simbólico criado nesse lugar. As possibilidades de metamorfoses do corpo, em virtude dessa característica da cultura japonesa, são amplificadas e incorporadas no fazer artístico e na recepção das obras (aceitas como “possíveis”).

Todo ritual implica numa metamorfose do corpo, que pode ser tão sutil, que não é visível. Porém, mesmo quando não é visível, essa metamorfose pode ser comunicação. Esse seria um material interessante que o cinema, o teatro e a dança japoneses nos oferecem, no que concerne à relação entre teatro e ritual.

Seu primeiro exemplo foi o teatro Nô, que tem início quando o limite da realidade já foi rompido. Alguns itens exemplificam essa condição de “superação/ rompimento com o real”: o shitê é uma aparição; ele nunca é o que “aparenta ser”; o tempo do Nô é metereológico e não cronológico (existem Nôs de vernao, outono, inverno, etc). Outro exemplo: o filme de Kenzy Mizoguchi, Ugetsu, traduzido em protuguês como Contos da Lua Vaga. No filme, a mulher aparece como uma personagem do Nô, sem que as outras personagens demonstrem qualquer estranhamento quanto a essa presença “diferenciada”: não existe interrupção de linguagem. Também no filme de Ozu, Pai e Filha, as metamorfoses do corpo estão presentes, com muitas possibilidades (inclusive, numa cena semelhante à troca de máscaras, que as personagens do Nô fazem na sala do espelho).

O butoh também propõe a convivência entre mortos e vivos. Hijikata coloca o corpo do bailarino como o corpo morto. A máxima que define o butoh seria “um cadáver que tenta levantar-se, mas não consegue sustentar as próprias pernas” – vide a História da Varíola, criada com inspiração num quadro de Bacon).

Os exemplos são vários; uma série de experiências, nos anos 60 e 70, partiram da mesma contraposição. Christine lembra que alguns grupos (como o Gutay, “descoberto” por Michelle Papier) tornaram-se muito conhecidos por aqui; outros (como o Monoha, cujo primeiro livro, da década de 60, só foi traduzido para o “ocidente” em 2008) esbarraram em dificuldades de tradução.

O impasse da tradução intercultural não é uma questão que envolve apenas a transformação de um código linguístico em outro, mas aspectos que vão desde interesses do mercado da arte (quem escolhe o que deve ser traduzido?), até problemas de perspectivas: a dificuldade maior reside na tradução do pensamento que a linguagem aporta; a tentativa usual costuma ser traduzir o objeto a partir das experiências e cronologias da história da arte ocidental e a tomar uma forma artística como um “resultado”, sem a apreciação do seu processo criativo; o que reduz a obra a uma “descoberta estética”. Iamero Mai Rimé, último livro dos cadernos de criação de Hijikata, não é um caderno pedagógico, num sentido estrito, mas abre um universo de significados para a experiência de criação de Hijikata no butoh. Como poderiam ser traduzidos?

Um exemplo paradigmático desse impasse está na noção de espaço-tempo da cultura japonesa, o “Ma”. Objeto de fetiche dos pesquisadores ocidentais, o “Ma” não é um intervalo, mas um processo de comunicação. O “Ma” é um jeito muito particular de se pensar a metamorfose do corpo, porque considera a “invisibilidade” como parte da comunicação: o aparentemente parado é também mediação.

A questão não está restrita à “filosofia”. Quando desaparece do teatro e da dança, reaparece no espaço “otaku”; ressurge na cultura de massa, como é o caso dos animês (vide as publicações da revista Garo)

Christine nos pergunta se esse hermetismo, que esses “textos da cultura” japonesa possuem, torna a nós todos, “leitores ocidentais”, usurpadores? O que seria necessário para empreendermos a tarefa de tradução de maneira “eficiente”? Se nós seremos sempre estrangeiros, onde podemos encontrar uma “empatia” de questões?

A platéia manifestou-se através de uma série de perguntas, que motivaram novas colocações. Uma pergunta foi da relação entre performance e tempo: como constituir uma temporalidade não linear e se o ritual pode oferecer soluções para a questão.






Cassiano citou Turner, para ressaltar que um dos sentidos da palavra RITO é RITMO. Os ritos marcam os “tempos fortes” da experiência, que são os tempos perigosos. O perigo desperta a atenção sobre o presente (rompendo as preocupações com o passado e o futuro, a experiência do aqui/agora é intensificada). Artaud já tratava do risco e do perigo, argumentando que o teatro precisa mobilizar forças, para ampliar a atenção e a percepção.

François Dolto, comentando a experiência do bebê, fala da sua incapacidade de adiar as compensações. O tempo do bebê é dado pelas suas necessidades corporais; a respiração figura como um sentido de ritmo primário, não-linear e com fundamento corporal.

Para Christine, o tempo no corpo será sempre plural (o devaneio é exemplar dessa pluralidade). O tempo da cronologia é, portanto, um artefato, uma ficção. Prigogine, em Nascimento do Tempo, trata da irreversibilidade da flecha do tempo. Pela platéia, ficamos sabendo sobre o cinema de Maia Dery, que declara produzir sua arte numa forma ritualística, a partir da construção de figuras numa perspectiva liminal (rompendo, por exemplo, com as divisões de gênero, apresentando o andrógino) e empregando a simultaneidade de tempos (onde cai por terra a noção de “causa-efeito”).

Outra questão posicionou uma dúvida sobre a presença do público, diferencindo o teatro do ritual: haveria outra saída para essa presença, se não tornar o evento um “fenômeno estético” partilhado?

Cassiano comentou que, para Grotowski, o espectador deixa de ser importante, a medida em que ele mergulha no universo ritual. Grotowski considera as pessoas como “torres de babel”, o que não existe no contexto ritual. A estética, portanto, precisa ser colocada em questão, quando essa aproximação de campos torna-se central. O ator, por exemplo, pode flutuar entre posicionar-se na criação “mais de fora”, ou de maneira mais “existencial”: ele será convidado a fazer essa escolha. Para a apreensão de um “corpo sem orgãos”, cumpre abraçar uma experiência menos codificada, que tem semelhanças com o reconhecimento de um corpo no espaço infinito (para Christine, essa seria uma “entrada num fluxo perceptivo”). Artaud menciona uma “caixa com fundo falso, de onde não param de sair coisas”. Contudo, Cassiano ressalta, pensar o ritual no teatro como um rompimento da separação entre palco e platéia é outra deformidade, fruto da nossa leitura pré-concebida desse espelhamento.





A “tensão” pareceu traduzir a relação entre teatro e ritual da melhor maneira nesse dia. Para Christine, esse tensionamento está claro na definição de Schechner para a performatividade, como uma “restauração de um comportamento”, não mais algum estado “originário”, mas um jogo diferenciado, proposto pelo “como se”. Como espectadora, já testemunhou essa tensão nos espetáculos de butoh, quando vistos muito de perto (Komurobuchi) e na dança de Lia Rodrigues, em Encarnado. Para Cassiano, o sonho “impossível” de Artaud ganha potência quando aponta para uma experiência que expande as fronteiras da representação. Ele já viu algo semelhante, em Artaud, de Rubens Correa, na Trilogia Tebana, de Andrei Serban e da apresentação dos Xavantes, há anos atrás, numa noite fria no Parque da Independência, em São Paulo.


(texto de Lúcia Walker Romano e fotos de Nelson Click Kao)