Transformando o protocolo, Paschoal saltou da cadeira e, lembrando os versos das Bacantes, da montagem do Oficina, sagrou sua fala à Dioniso e inaugurou um novo território para o nosso encontro, da fala-performativa. “A vida vira santa… pratica sagradas ações… celebra a orgia de Nanã… a Dionisos se entrega… corôa a cabeça de heras… um tirso na mão… um Messias que se bebe…” foram retalhos dessa fala que ficaram marcados, enquanto Paschoal canto-pedia “baixai Bacantes!” e encerrava “Ió!”.
Segundo Paschoal, foi determinante para sua reflexão um trecho do nosso e-mail convite, onde falávamos de “dilemas de tradução” e o provocávamos com a pergunta “em que medida o teatro é ou não um ritual?”. Paschoal lembrou do I-Ching, para salientar que as forças religiosas servem para superar o egoísmo; mas que a instituição eos governos utilizam essa necessidade humana para a coerção. Sua definição de ritual passeiou entre vários aspectos: o ritual enquanto forma de relação entre a família e o estado; o ritual enquanto recurso para o “despertar da consciência para a origem comum de todos os seres”; o ritual enquanto fenômento coletivo; o ritual e sua temporalidade (começo/meio/fim) e o ritual enquanto “algo” técnico, combinado, que o sujeito realiza com “religiosidade”.
Ficou explícito que Paschoal não faria uma separação etimológica dos termos teatro, ritual e religião; mas uma ampliação da relação entre essas “palavras-guarda-chuva”, através de sua dimensão metafórica. Paschoal posicionou-se, então, em primeira pessoa, para relatar sua experiência íntima nessa área sensível à flutuação das terminologias.
Paschoal conta em sua fala como já viveu diversas experiências religiosas, de ritos religiosos em diferentes igrejas. No teatro, As Bacantes, na versão do Oficina, é o principal exemplo que destaca para discutir o ritual do deus Dioniso. Ele demarca ter vivido duas experiências diversas nesse espetáculo, quando entrou em cena “normal” (“eu, de eu”, segundo ele) e “pegado” (tendo bebido ayhuasca). O estado alterado da ayhuasca estabelece o ritual do teatro numa temporalidade especial, composta de angústia (ao invés de “início”, na coxia), deleite (ao invés de “meio”, no palco) e ressaca (maresia, reflexão, cansaço, ao invés de “fim”). A abertura da substância potencializa o medo de se perder, da loucura, da desgovernabilidade do poder criador. Estar em cena é “pânico!”; o que não pode ser vivido a toda hora. A ressaca do retorno é tão exaustiva, porque o ritual acontece NO CORPO do ator; é o corpo que vive e traduz, transitando entre maior e menor consciência, suas transformações.
Paschoal lembra que, na vida, a adolescência exemplifica um momento no qual os indivíduos passam por grandes transformações corporais. São transformações doloridas e, sobretudo, lentas, porque o sujeito precisa tornar-se consciente delas. Os espectadores também vão ao teatro para passar por transformações e nesse aspecto, teatro é um ritual. Mas, esse ritual é do tipo “teatral”. Por isso, mesmo na alucinação, o ator em cena precisa estar “alucinado pelo teatro”, “alucinado pela alucinação do teatro”.
Paschoal ilustra esse ponto, narrando o embate que travou consigo mesmo na cena das Bacantes, quando seu personagem, um policial, deveria “capturar Dioniso”. Na alucinação consciente da ayhuasca, Paschoal desejava comer um mixto quente com guaraná. Ao mesmo tempo, as sensações e reflexões sucederam-se: “o plantão ainda não acabou… e se eu encontrar as bacantes, armadas de pedra e pau, na coxia? E se eu não cumprir o que se espera do policial? Para onde vai a história?” Paschoal concluiu seu questionamento formulando as máximas da governabilidade e da fé: a governabilidade deverá vencer a alucinação; caso contrário, o ritual do teatro não será cumprido. O ator, como um “ser crédulo”, não deve ser de nenhuma igreja, mas manter-se crente.
Ferracini optou por relacionar a princípio os campos do ritual (numa acepção ampla) e do ritual teatral, a partir de um conceito que formulou sobre a “potência da diferença”. O ritual religioso, estebelcido com o objetivo de uma “religação”, traz uma potencialidade de mudança do sujeito, apontando para novas possibilidades de visão sobre o mundo. No cotidiano, nossos “rituais” abrem a possibilidades de movimento.
As formas rituais e o teatro assemelham-se no paradoxo entre repetição e transformação:
- a repetição revela novas possibilidades da existência;
- teatro e ritual caracterizam-se pela ação repetida;
- essa ação repetida nunca é a mesma (é uma aparência de repetição, mas como a atualização da “potência de diferença”;
- teatro e ritual servem para recordar a infinidade de combinações possíveis, de variações de um único fenômeno (por ex. – a chuva contém infinitas singularidades). O que “retorna” da repetição é a diferença.
- teatro e ritual tornam-se “esvaziados’ quando perdem suas pequenas diferenciações (ficam “mecanizados”);
- teatro e ritual atuam sobre a “suspensão” da descrença (de si mesmo e do mundo), porque propõem uma ação que precisa ser realizada. Mesmo a “consciência de representação”, que caracteriza o teatro, não rompe com essa “crença”. A palavra do ritual é “religare” e do teatro “revivere” – em ambas, aparece a idéia de “resistência”.
Os dois pontos, “o que retorna é a diferença” e “suspensão da descrença, via um artifício” constituem para Ferracini chaves dessa relação entre teatro e ritual; as quais desenvolvem o aspecto da transformação nos dois campos. O teatro (não só o espetáculo teatral, mas os ensaios, treinamentos, etc) trabalha na “infra-consciência” corpórea; suas mudanças importantes são microscópicas. O corpo, aparentemente estável, passa por mudanças celulares (as células ósseas são renovadas a cada dez anos…). O ritual também atua no “macroscópico” e no “microscópico”… Mas, segundo Ferracini, o que importa é o mergulho nas micro-percepções (conceito de Leibniz). Ele lembra que o mesmo é afirmado por Deleuze, quando argumenta que aquilo que é “percebido” é o macro (de fato, uma ilusão completa); enquanto que o que “afeta” é o micro (captável pelas sensacões…). Um exemplo dessa diferença de consciência está na alteração da sensação temporal, pela mudança na percepção sensitiva.
Mais uma vez, as questões da mesa e da platéia confundiram e ampliaram o debate. Paschoal foi solicitado a definir melhor a linha tênue que desenhou entre ordem e acaso, presente em sua conceituação sobre a “governabilidade” no trabalho do ator. Paschoal recordou como as leis do ritual buscam controlar as possibilidades de “desgoverno”. No teatro, são leis dessa espécie o “projetar a voz”, “ter clareza nas ações” e “dar cabo da história”. Os ensaios são estudos, pensados com vistas a essa clareza. Na técnica de “ensaio silencioso”, por exemplo, salta aos olhos o monólogo interior, que na construção do ator também oferece a “governabilidade”.
Observando a Orestéia, de Ésquilo, percebe-se a presença de uma caçada. O mesmo ocorre nas Bacantes: o espírito do ator deve trabalhar sobre essa caçada. Também com a caçada, seu espírito está sendo trabalhado, o tempo todo. Nesse caso, o espírito da caçada é um elemento de governabilidade a ser empregado pelo ator. Em primeira e última instâncias, o ator está na caçada do espectador e para isso ele usa a peça.
Paschoal revela que aprendeu a não se deixar desgovernar. O risco é constante: por vezes, ele vai além e “paga um”. Mas ele fica realmente “puto” quando vai “menos”. Porque ele não pegou a platéia e não contou sua história. O custo não é baixo: quem não faz direito o rito, leva porrada. O ator, segundo ele, sabe disso. A “pessoa do ator” tem que preparar-se antes para, na hora da cena, estar na linha de frente.
Ferracini buscou tornar mais claro o conceito de potência de diferenciação no trabalho do LUME. Contou que esse enfoque apareceu no grupo, principalmente, atravees do trabalho com o butoh. O dançarino do butoh trabalha as micro-ações; lida com as micro-musculaturas. Olhando “de fora”, ele parece inerte, mas está enfocando o desenho da ação e a postura pouco usual (altamente tonificada) e busca uma maneira de dançar as pequenas variações, no espaço e no tempo. Assim, o interesse do LUME está na pesquisa da açnao sutilizada, por exemplo, perguntando “o que você tem que mover para dançar parado?”. A pergunta mostra como dentro de uma ação pode-se realizar muitas coisas. Ela abre uma escuta para o outro e para o espaço, estabelecendo essas relações microscópicas, às quais mesmo as ações de deslocamento precisam estar vinculadas. A demonstração técnica “prisão para a liberdade” aborda isso. A conclusão de Deleuze cabe aqui: as criações (artística, filosófica ou científica) precisam manter as possibilidades do caos, não sua desordem.
A platéia inquiriu os dois convidados a respeito da potência ritual ter ou não relação com uma finalidade e, no caso da performance, com a impossibilidade de repetição. Ferracini lembrou que a performance coloca em primeiro plano a diferença, mas não tocou no asssunto da “irreprodutibilidade” da performance, porque insistiu na sua colocaçnao de que não existe repetição, apenas “diferença”. Citou como exemplo o ritual cotidiano de escovar os dentes, para falar de um ritual que não é religioso e de como a iluminação pode aparecer num “lugar” onde a ação ritualística não prevê essa “mudança de consciência”.
Paschoal destacou que, para alguém atingir um mudança de qualidade, precisa provocar um “estado de alteridade”. As formas rituais têm seus “signos” particulares, inventados para promover e indicar essa alteridade. A contracultura trouxe uma apropriação “pragmática” (eu diria, programática) dessas significações rituais. Esse material já foi inovador em outros tempos do teatro, mas o teatro ritual precisa reinventar esse modelo e isso não é fácil. Paschoal recorda, contudo, que o teatro é absolutamente “espírita” (vide o trabalho de Stanislávski…). Se é difícil reinventar essa “simbologia”, por outro lado, o ator brasileiro sabe o que é o ritual, porque vive isso na cultura; ele “sabe a perturbação do filho de santo que [ele] é.” Cutucando o companheiro de mesa, concluiu: “Deleuze vem antes; na hora, é você. Você é seu Deus.”
Interessante uma das perguntas, que questionou se esse “ritual da transformação no corpo” pode aparecer em todos os tipos de teatro, ou apenas no teatro de grupo; sendo potência presente somente numa dimensão de “teatro ritual”, que o “teatro comercial” não pode atingir. Ferracini afirmou claramente que o teatro que ele conhece é o de grupo, porque são quatorze anos de trabalho no LUME. Esse teatro pode até protegê-lo das leis de mercado, mas também é um lugar de tensão. Contudo, acredita que a potência de transformação é inerente ao humano e pode estar presente em todos os tipos de teatro.
Para Paschoal, o ator deve poder praticar o teatro sagrado e o teatro profano. Para ele, foi importante “fazer todas as misturas”, sem deixar-se contaminar pelo pior do profano, nem pelo pior do sagrado. O ator deve ser cavalo de diferentes tipos de teatro. No teatro ritual, o ator produz algo para vivenciá-lo e, depois, sair dalí. Porque, caso contrário, ele vira sacerdote. Mas também no teatro comercial, o ator pode virar carola e maluco e é preciso tomar cuidado com TODAS as religiões.
Mais uma vez, a platéia quiz saber qual a dimensão do coletivo, no aspecto de compartilhamento da experiência de um “teatro ritual”. Renato foi direto ao afirmar que teatro é sempre um rito coletivo, mesmo num solo. Nunca será um ritual individual. Mas não existe apenas a participação direta da assistência, já que incluir o espectador pode ocorrer de diferentes maneiras em diferentes trabalhos. Contudo, em tudo que o LUME faz, está a presença do público participante. Paschoal resumiu que, mesmo que a participação do espectador esteja prevista (e isso o Oficina faz muito), o espectador pode sair da peça sem “sentir nada”. A platéia não é ignorante, nem manipulável. Ela está pronta para a cena, emitindo sinais, e o ator deve estar sensível e calmo, para encontrar a sua caça. O rito precisa ser cumprido, mas o ator não precisa problematizar isso. Segundo Paschoal, o teatro já era mediúnico e religioso, antes de todos nós, presentes no TUSP no dia 15 de setembro, estarmos vivos.
Mas, nada como encerrar a noite em contradição. Questionado sobre como se dilui a técnica, num corpo e num espírito, na experiência do corpo cênico “dilatado”, Ferracini recusou qualquer separação entre corpo e espírito, uma vez que o corpo é sistêmico. O corpo não é instrumento, nem transcendente e qualquer “boa técnica” deverá perseguir a relação entre todos esses planos de ação.
(textos de Lúcia Walker Romano e fotos de Nelson Click Kao)
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