Os ENCONTROS SOBRE TEATRO E RITUAL foram acolhidos pelo TUSP e realizados do dia 01/09 a 06/10, reunindo convidados, os artistas da Cia Livre e um público interessado na proposta da Cia Livre de rever a relação entre teatro e ritual, apreciando “as principais linhas de tensão, os antecedentes históricos e as questões antropológicas, filosóficas e estéticas envolvidas [nesse] cruzamento”. Os seis dias de conversas buscaram estender a questão para outras áreas do conhecimento, enfatizando o diálogo do teatro com disciplinas “irmãs”, das chamadas ciências humanas e das artes.
Nosso cronograma foi inaugurado, no dia 01 de setembro, com uma abertura da Cia Livre, representada na mesa por Cibele Forjaz, Pedro Cesarino e Lúcia Romano, cujo objetivo foi expor aos presentes a razão dos encontros, contextualizando esse questionamento na trajetória dos espetáculos da Cia. Livre, no cotidiano dos ensaios do Projeto de criação em desenvolvimento e no panorama que vislumbramos para nosso próximo espetáculo.
Cibele enfatizou o percurso “ritualístico” percebido nos ensaios da Cia Livre, na relação da pessoalidade do ator com o material criativo (cito o entrelaçamento entre o mito marubo e as estórias pessoais dos atores) e na necessidade de, em certos momentos do processo, sairmos da sala de ensaios para outros “lugares”, abrindo a experiência da equipe para “outras realidades” e para o “acaso” do espaço público. Nos espetáculos já criados, Cibele enumerou a “assunção da platéia”, a presença de cenas improvisadas (em contraposição a outras “ensaiadas e fixadas”) e o rodízio dos atores pelos personagens como aspectos essenciais dessa idéia de teatro-ritual que vem perseguindo os nossos processos; o que torna o espetáculo diferente a cada dia, potencializando os elementos de variabilidade e atualidade que caracterizam o fenômeno teatral. Talvez, ritual pudesse ser traduzido, nessa colocação, como “jogo” e “experiência viva”. Ainda em sua fala, o ritual apareceu como dimensão metafórica para o diálogo entre a estrutura do espetáculo e a experiência do espectador e dos atuantes. No caso de VemVai, o espetáculo é pensado como um ritual de passagem, que será vivenciado pelos atores, em comunhão com os espectadores. Para tanto, VemVai configura-se espacialmente como um caminho, onde estão dispostas as cenas e os mitos “recontextualizados”, e pelo qual todos deverão transitar, deslocando-se fisicamente e não apenas com o “olhar”.
Lúcia (eu) procurou situar o problema da relação entre teatro e ritual na criação do ator. Na perspectiva da Cia. Livre, a curiosidade em torno dessa relação responde a uma somatória de depoimentos nascidos da experiência do espetáculo VemVai, reconstituída a partir da vivência dos criadores da equipe e dos atores em particular e das narrativas de recepção de alguns espectadores. Apesar de ser dificilmente descrita, essa experiência foi traduzida diversas vezes como sendo “ritualística”, “onírica”, “vivencial” e outros adjetivos que poderiam ser remetidos a uma vivencia “ritualística”.
Para o ator, contudo, um projeto ritualístico precisa significar um percurso palpável, na sala de ensaios e na cena. A presença nos textos sobre teatro dos termos “ator santo”, “ator xamã” colocam um peso de responsabilidade e uma aura mágica na tarefa que, talvez, a torne mais complexa. As associações possíveis para explicar essa empresa são várias: atingir uma outra percepção de si mesmo (uma “sintonia fina”), uma outra fisicalidade (um corpo expandido e diferenciado do corpo cotidiano ou do corpo banalizado pela “tradição de representação mimética”); estabelecer na cena um tempo/espaço singular, etc. De uma modo geral, está em jogo a dualidade entre negar a tradição teatral “ocidental” (estar fora da representação, além dos limites da personagem construída psicologicamente, e estabelecer conexões com uma ação simbólica que remeta o ator à “encarnação”) & abraçar outros campos de trabalho (talvez, presentes em outras tradições teatrais ou em formas rituais fora do teatro) que poderia ser definida como um jogo de mutações entre o registro “pessoal” (a experiência individual do ator), tornando-se canal para um identificação com o espectador não mediado pelo recorte ficcional (dado, por exemplo, pela fábula ou pelo texto dramático). Em outras palavras, abraçar a tarefa de ser instrumento de revelação da condição humana no tempo presente da ação teatral. Ufa!
A tarefa parece magistral e impossível e não será mais do que uma proposta vazia, se não encontrar suas práticas. No momento, a Cia Livre trabalha com as narrativas míticas e elementos da palavra presentes nessas narrativas, relativos à produção da voz “encarnada”, do canto e do ritmo. Artaud fala em “do corpo, alcançar a alma num sentido inverso e reencontrar o ser”. Já Grotowski menciona o ritual para defender um teatro que não busca um cerimonial que entorpece. Lúcia (eu) destaca que, no momento, supõe que a companhia deseje uma transcendência, mas esteja elegendo como foco central, através do tema teatro-ritual, a “reação à mediação”, uma resposta inquieta a um teatro ilusionista, carente de corporeidade, de alma, de sentidos e suas inversões e de um ser coletivo.
Pedro refez parte do caminho que vem construindo junto ao grupo, nos encontros de estudo que vimos realizando nos últimos meses. Comentou a distância da criação contemporânea do terreno do fabuloso e uma “náusea” com relação ao tema do “ritual no teatro”, também característica dessa contemporaneidade. Continuou “limpando o campo”, lembrando a definição de Benveniste de que arte e ritual são etimologicamente e semanticamente relacionados. Ao mesmo tempo, ecoou Vernant, para estabelecer diferenças; mesmo que irmanado ao religioso, o teatro separa-se do ritual. No teatro grego, objeto de Vernant, a consciência de ficção (presente na idéia de mimesis) é estabelecida, fundando essa mutação, por exemplo, na transição entre a presença divina (do ritual) para a sua “representação”, através do ator (no teatro).
Pedro destacou o retorno do tema do ritual no teatro de fins do século XIX (na esteira da crise do projeto da modernidade e início dos “modernismos”), como reação do “fazer artístico” ao mundo de simulações e ao jogo social, revitalizando nas artes “de vanguarda” a herança da estética romântica, que via as formas rituais (ao lado da arte popular e da natureza) como fontes de inspiração capazes de “restaurar”, “reintegrar” algo perdido nas origens.
Grotowski, num grande salto temporal, reatualiza mais uma vez o ritual, atrelando-se a uma espécie de “via negativa”, que busca constituir um novo teatro, a partir do que lhe vem faltando. Segundo Pedro, a reflexão sobre o tema precisa gerar instrumentos críticos que permitam iluminar contradições em torno da relação entre teatro e ritual, atentar para as flutuações semânticas e revelar as heranças históricas que movimentam as freqüentes revisões desse espelhamento e que, talvez, sejam a razão de seu “esgotamento” na contemporaneidade.
PERGUNTAS
- qual é a necessidade do transe? Quando se fala de um cerimonial que não entorpece, isso foi uma recusa do entorpecimento?
- qual a forma de não se “fetichizar” o ritual? Buscar o teatro no mito e não o mito no teatro? (se a antropologia é, ela mesma, um instrumento científico e responsável pela fetichização de uma série de comportamentos e fenômenos)?
O teatro consolida, ele conta a história do mito. O rito é uma fonte geradora... o teatro é a finalização disso.
- o mundo contemporâneo urbano é destituído de sentido simbólico?
- não precisamos (re)criar um rito para viver uma peça?
- imagem do hipódromo (de Luiz Fernando Ramos) - onde estamos nesse percurso?
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